Carta da UJC acerca da greve da USP

Agora, se não escolhermos nossos próximos passos com cuidado, temos o risco de perder os maiores saldos da greve, não os que foram apresentados pela reitoria, mas sim aqueles que versam sobre a dinâmica do movimento estudantil e nos dão uma real perspectiva de uma luta a médio e longo prazo.

Por UJC-USP, em 30.10.2023 · 43 mins

Companheiros, escrevemos essa longa carta a todos os estudantes em um esforço de socializar os acúmulos que tivemos com a greve, qual é nossa leitura do que foi o movimento, porque não conseguiu alcançar as principais reivindicações, qual a nossa análise da última assembleia do DCE e quais os problemas das propostas apresentadas pelos dois lados, bem como qual é a proposta da UJC para criarmos as condições materiais de um movimento vitorioso. À medida que o movimento se desenrolava, percebemos como os diversos vícios no ME tradicional, muitos dos quais nós também reproduzimos, eram danosos ao movimento e, por isso, passamos a buscar fazer a autocrítica na prática. Entendemos que são vícios gerais, prejudiciais ao movimento como um todo, havendo a necessidade, e o dever, de realizar a crítica aberta e científica, afinal os estudantes percebem esses vícios e sua reação a eles não deve ser ignorada. Ao tentar abarcar temas tão complexos com seriedade e cientificidade, a carta está extensa, mas acreditamos ser de suma importância sua leitura, até mesmo e principalmente por quem discorda de nossa posição para que nos critiquem e façam avançar o movimento. A crítica aberta é a base da autocrítica e, sem esse processo, é impossível fazer com que o movimento avance.

Conjuntura do Movimento Estudantil no pós-pandemia

Vimos nesse último mês uma greve que, apesar de massificada, não conseguiu concretizar suas principais reivindicações. Para entendermos o que foi esse movimento e o porquê dele não ter obtido resultados satisfatórios, precisamos entender que ele não existiu no vácuo, o movimento estudantil existe dentro de um contexto, tem uma história e carrega contradições decorrentes dela. Por isso, acreditamos ser tão importante entendermos o ME no período pós-pandemia.

A pandemia representou uma quebra muito grande na continuidade das iniciativas na USP, diversas entidades simplesmente deixaram de existir durante a pandemia, de CAs às demais Organizações Estudantis, o que resultou em um afastamento dessas de suas bases. Na volta ao presencial, tivemos duas gerações de estudantes que nem sabia o que eram os CAs, o que faziam e qual sua importância para eles, o que apenas piorou se considerarmos a falta de organização generalizada na calourada e nos meses que antecederam suas eleições, efetivamente criando três gerações de estudantes que nunca conheceram a dinâmica da vida universitária em seus mais diversos aspectos, do cultural ao político.

Sendo as entidades compostas por estudantes, que eventualmente se formam e deixam a universidade, com a pandemia, diversas pessoas que eram referência em seus cursos e que já estavam formadas deixaram suas entidades sem ter conseguido formar seus sucessores, impedindo a renovação dos quadros locais, em especial os de organização, levando a uma desorganização generalizada não só do ME mas também de todas suas iniciativas paralelas. Se não temos quem saiba o que fazer, como fazer e nem quem acompanhe o andamento dos trabalhos, a tendência é que as poucas pessoas bem formadas peguem tudo para si, o que só gera sobrecarga, quebra os poucos quadros existentes e desorganiza ainda mais o movimento.

Também é fundamental considerar que a pandemia significou uma enorme individualização da comunidade, os estudantes estavam sozinhos em seu isolamento social, não tinham contato com seus colegas nos espaços acadêmicos e muito menos nos espaços sociais e, assim, não conheciam nem seus colegas de curso, quem dirá colegas de campi. É a partir desse contato presencial que o indivíduo passa a reconhecer que seus problemas não são individuais, que seu sofrimento decorre do mesmo problema do sofrimento alheio, é isso que gera o reconhecimento do indivíduo enquanto membro de uma classe, com interesses comuns bem delimitados.

Essa atomização e destruição da comunidade foi um fator decisivo quando consideramos o esvaziamento dos espaços coletivos, sejam de socialização ou, no nosso caso, de ME. Plenárias, reuniões abertas, mesas de debates ficaram extremamente esvaziadas, as assembleias de curso dificilmente tinham quórum, as gerais só tinham pessoas organizadas e os atos, muitas vezes, nem isso. Dada a dinâmica das forças organizadas, que raramente entram em acordo, e sem a massificação necessária para que esses espaços sejam democráticos, eles se tornam cada vez mais burocráticos e performáticos. Se tudo foi decidido pelas direções em bilaterais, as votações já estão predeterminadas, isso significa que os espaços democráticos se tornam performáticos, faz-se uma fala inflamada, cheia de convicção, apenas para gravar e postar no instagram, já que ninguém no espaço está passivel de ser convencido. As propostas defendidas, a linha política a ser trazida e as mediações feitas, já foram todas decididas pelas direções em bilaterais entre as forças. Esse é um erro que a UJC também cometeu e custamos a reconhecer, mas que agora caminhamos para superar.

Balanço da greve

É nessa conjuntura que entramos em greve. A despeito da organização e construção a longo prazo em alguns locais, como a Letras, o movimento geral foi mobilizado e massificado não pela organização do ME, convencendo e mobilizando estudantes, mas sim por conta de um fato político, o fechamento dos prédios pelo diretor da FFLCH, que colocou a luta política massificada novamente no imaginário estudantil. Por isso, as primeiras semanas da greve foram de uma crescente que há muito não víamos na universidade, com todos os cursos da CUASO bem como a maioria dos cursos da Capital aderindo a greve, nos dando uma força enorme que foi muito bem demonstrada no ato até o Largo da Batata (26/09). Mas essa força, essa crescente, gera uma aguda contradição, se tínhamos tanta força porque não conseguimos mais? Acreditamos que os três elementos centrais para responder a essa pergunta são: os vícios do ME tradicional, a cultura política das bases e um excesso de confiança nas negociações.

Dos vícios do ME tradicional, o mais danoso é o cupulismo. O cupulismo é a política de cúpulas, das decisões a “portas fechadas” feitas por bilaterais em que os dirigentes decidem sozinhos como conduzir o movimento, fazendo com que os momentos de deliberação sejam apenas uma performance, como pontuamos acima. Esse vício carrega o clássico erro da esquerda, inclusive da revolucionária, de confundir os representantes de uma classe pela classe em si, não é porque uma pessoa tem a confiança das pessoas que ela defenderá seus interesses, nem que tomará a tática mais acertada. A construção coletiva organizada, democrática, é muito mais frutífera em gerar acúmulos do como defender esses interesses, entender quais as reais demandas da classe e quais as medidas mais importantes e prioritárias a serem tomadas, justamente por considerar maior pluralidade de pensamentos, opiniões e vivências. Claro que isso não significa que todo e qualquer pensamento será acatado, afinal se uma pessoa ou força não consegue convencer a maioria dos presentes, de nada adianta, é a síntese coletiva, e não individual.

O cupulismo gera, sempre, falta de democracia no ME, inclusive dentro das próprias forças, e quando não há democracia, a base, as massas, não se sentem ouvidas, porque realmente não são. A incapacidade das forças de estimularem e ouvirem a inteligência coletiva da classe foi definitivamente um fator decisivo para a adoção de táticas erradas pela direção do movimento, que contava também, mas não somente, com o DCE. Além disso, quando a disputa é definida dessa forma, o tamanho de uma força vira um ponto central nas negociações e gera mais um vício, o disputismo, a demarcação de território, indissociável da performance. Quando o critério para a atuação política deixa de ser a análise material da situação concreta e passa a ser o crescimento a qualquer custo, vemos que a honestidade é sempre a primeira vítima. O convencimento passa a ser na base da difamação, das conversas paralelas, da crítica velada, fomentando a intriga pessoal, ao invés da crítica aberta e científica a uma linha política, tática ou atitude, com base na realidade, nos espaços coletivos de discussão, permitindo o embate das ideias e formação de sínteses, fazendo avançar o movimento ao invés de implodi-lo.

Esses vícios geram a falta de unidade tática, afinal se a força X está organizando um trabalho geral, porque eu da força Y vou construir essa iniciativa quando X ficará com todo o crédito? Acreditamos que a falta de unidade tática foi um dos fatores decisivos para a falta de coesão do movimento geral e, portanto, para o desenrolar insatisfatório da greve geral. Por isso, é preciso sim criticar esses vícios, mas de maneira aberta e material para que o movimento geral seja capaz de realizar sínteses sobre como superá-los. O maior exemplo disso pôde ser muito bem observado nas iniciativas do comando geral, não unificamos o método do trabalho de dados nem conseguimos lidar com as aulas online. Acreditamos que isso aconteceu pois o espaço do comando reproduzia os vícios apontados acima, as iniciativas não foram feitas de maneira democrática, não teve uma decisão coletiva de quem tocaria qual trabalho e nem acordo sobre como tocá-lo.

Como pontuamos acima existe também a falta de organização e disciplina do movimento como um todo, não estando restrito às forças partidárias, e que é uma herança da pandemia. A falta de organização se reflete, localmente, na imensa sobrecarga das tarefas organizativas em poucos quadros bem formados e, no geral, na incapacidade do movimento organizar um trabalho coeso. Já a falta de disciplina decorre da falta de um sentimento de comunidade e da falta de democracia do movimento, afinal após participar de um espaço formal, desorganizado e caótico, em que não há espaço para o convencimento, é claro que as pessoas menos engajadas do movimento irão parar de frequentá-lo e deixarão de ver a luta enquanto também deles, se tornará algo distante, que torcemos que dê certo mas que não podemos influenciar em seus rumos.

Além dos problemas estruturais do movimento, também temos que nos atentar ao fato que mesmo a greve começando por pautas econômicas, à medida que avançamos em entender as próprias demandas, transformaram-se em pautas políticas. Ou seja, entendemos melhor quais são as estruturas da USP que dão concretude para a implementação do projeto neoliberal elitista da universidade. Assim, lutamos contra o projeto político que vem sendo aplicado na USP há anos, mas o movimento não tinha clareza de qual projeto político para a universidade nós queremos implementar no lugar.

Decorrente desses problemas, o movimento caiu em uma grave armadilha. Primeiro, devemos lembrar que a temporalidade do ME é diferente do da reitoria, enquanto a gente passa alguns anos na universidade e vemos uma, no máximo duas greves, a reitoria já viu inúmeras e seus acúmulos para lidar com a greve são muito maiores que os nossos, inclusive por isso precisamos abrir tribunas coletivas de balanço do movimento. Assim, caímos na armadilha de confiar na reitoria. Acreditar que apenas os melhores argumentos bastariam para deixá-los calados e aceitarem nossa proposta foi, no mínimo, ingênuo. Conseguimos os melhores argumentos possíveis, na última negociação deixamos a reitoria calada e, calados, eles fecharam a mesa de negociações e impuseram medidas no movimento. Tentamos remassificar, conseguir mais uma reunião, mas o movimento já estava muito fragmentado, sem prestar atenção no geral, e desmassificado, é preciso compreender que a reitoria teve a astúcia de tomar uma medida dessas apenas quando percebeu nossa fraqueza.

Não podemos ser derrotistas, a greve não foi vitoriosa mas também não foi derrotada. Tivemos sim conquistas e devemos analisá-las cientificamente, no caso separamos elas em conquistas de três tipos: econômicas, organizativas e políticas. As econômicas são as mais tangíveis, são a maioria das medidas adotadas pela reitoria, e são todas, no mínimo, insuficientes, como a contratação adicional de 148 docentes, que não estão nem perto de sanar o déficit docente da USP, quem dirá retomar o patamar de 2014, se considerarmos a projeção da saída de docentes da folha de pagamento nos próximos anos. Já as conquistas organizativas versam sobre as capacidades que o movimento tem de complexificar seu trabalho, o que fortalece o movimento na medida que passa a ser capaz de atuar em diversas frentes, aumentando o número de pessoas envolvidas diretamente na construção de um projeto político. Pela primeira vez, em muito tempo, pudemos discutir coletivamente sobre quais são as nossas pautas mais imediatas e estudar sobre elas. Já é um avanço, mas não podemos parar por aqui, devemos ir além das pautas que reformam a universidade burguesa e precisamos avançar na construção de acúmulos sobre a construção de uma universidade que rompa com essa lógica e que sirva aos interesses da nossa classe. A menor dessas conquistas é saber fazer assembleia, o maior Um dos maiores saldos organizativos do movimento foi que a greve revelou quadros proativos e, dispostos a construir um projeto coletivo.

Contudo, acreditamos que as maiores conquistas foram políticas. Localmente alguns institutos conseguiram que fossem aplicadas cotas PPI na contratação de docentes, bem como a criação da Comissão de Acesso Indígena, essas medidas democratizam a universidade na medida que muda o perfil social da universidade, só que dessa vez também no setor docente, que hoje é tão homogêneo e bem reacionário. Porém, a maior conquista política dessa greve foi a elevação na consciência de classe, a classe em si se torna classe para si, algo bem menos tangível mas que não pode ser menosprezado. Isso significa que os estudantes, hoje, se reconhecem enquanto classe, ou seja, um sujeito político que luta por interesses coletivos que devem ser defendidos por nós. O estudante passa a se ver enquanto parte de um coletivo novamente, algo que havia se perdido na pandemia, e vai além, entende que deve ser um sujeito ativo na defesa dos interesses coletivos.

Agora, se não escolhermos nossos próximos passos com cuidado, temos o risco de perder os maiores saldos da greve, não os que foram apresentados pela reitoria, mas sim aqueles que versam sobre a dinâmica do movimento estudantil e nos dão uma real perspectiva de uma luta a médio e longo prazo.

Análise da Conjuntura que fizemos na Assembleia Geral do dia 18/10

Acreditamos que a Assembleia Geral do dia 18/10 foi um ponto crucial no movimento, tanto da greve mas principalmente do ME num geral. Antes de mais nada, devemos pontuar que a composição da assembleia por si só já era enviesada, os estudantes a favor da greve, provenientes em sua maioria de independentes cujas unidades/cursos segue mobilizada, e membros de forças políticas que estavam a favor do fim da greve, dando a impressão de que eram as forças, de maneira descolada e cupulista, que haviam decidido pelo fim da greve e querem impor isso ao movimento geral, quando na verdade a grande maioria das unidades/cursos já tinham terminado com a greve naquele momento, bases independentes que já não viam sentido em sequer participar da assembleia, uma vez que a greve foi muito mais local do que geral. Para esses estudantes a greve já havia acabado.

O movimento estava esvaziando e a reitoria havia fechado as negociações, impondo ao movimento uma proposta final completamente insuficiente e até desrespeitosa. Tal proposta não atende de maneira satisfatória nenhuma reivindicação nossa, o número para reposição do corpo docente é irrisório, aumentou-se o funcionamento dos RUs sem prever contratação de funcionários e continua-se tendo um teto de bolsas de auxílio. Além disso, essa foi uma proposta deslocada das medidas que vinham sendo conseguidas durante as negociações, retrocedendo em absolutamente todos os pontos, embasada na adulteração da ATA da última negociação. Quando os negociadores se recusaram a assinar aquela ATA adulterada, a reitoria fechou a negociação, e fez isso pois nós ganhamos nos argumentos, não havia mais “lógica” que pudesse esconder o projeto de universidade que a direita implementa na USP há anos, e esse projeto é neoliberal, elitista e privatista. O fechamento das negociações implica necessariamente no uso da força para acabar com o movimento, afinal, se perderam nos argumentos e por isso fecharam o diálogo, a única forma que resta para desmobilizar uma greve é a repressão. Entendemos então que, de fato, para conseguirmos arrancar mais qualquer coisa da reitoria, seria necessário uma radicalização da luta, deveríamos nós também impor nossos termos. Porém, dia após dia a greve geral se tornava em greve local, a luta da classe se torna, assim, a luta individual ou de algumas ilhas de mobilização.

A partir dessa análise, foram propostas duas saídas: o fim da greve, apostando nas mobilizações futuras, e a continuidade da greve, apostando na radicalização. A disputa entre essas posições se deu de maneira completamente abstrata e rebaixada, com a continuidade da greve sendo defendida a partir de um moralismo, fazendo com que nenhum dos lados conseguisse responder às principais perguntas decorrente de suas propostas. De um lado, aqueles que defendem a continuidade radicalizada da greve não propuseram de maneira clara: Como radicalizar? Quais táticas serão adotadas? Isto ficou nítido na semelhança entre o calendário de greve aprovado nesta assembleia em relação aos demais calendários. Consideravam sim que é necessário massificar o movimento, mas como? Como lidaremos com a provável repressão física, administrativa e jurídica? Ao mesmo tempo que aqueles que defendiam o fim, apostando na mobilização futura, colocaram a existência de conquistas organizativas, bradaram que agora o ME será diferente do que no pós pandemia, não colocando de maneira clara: Quais foram as conquistas organizativas? O que mudou no movimento com a greve? Massificação veio de onde? Qual conquista é tão boa que vale a pena ser preservada? O que será feito de diferente para preservar a mobilização adquirida com a greve?

Crítica ao esquerdismo

Dadas essas dinâmicas apontadas e os erros cometidos, é sintomático que surjam manifestações legítimas que expressam a insatisfação com as direções estudantis e os rumos da greve. As críticas são válidas, assim como a insatisfação com os resultados da greve. Como apontado anteriormente, as contradições do movimento estudantil em conjunto com as condições materiais pós pandemia fizeram com que a greve não conseguisse se manter massificada para pressionar a reitoria, fazendo com que não alcançasse suas principais reivindicações.

A UJC compreende essa insatisfação, vinda especialmente de estudantes independentes, como uma consequência da atuação do DCE e das demais forças organizadas do ME da USP, cujas práticas contribuíram para o afastamento entre as forças e os demais estudantes, o que é contraditório com o papel que as entidades e forças deveriam ter nesse momento: debater e construir sua posição em conjunto com todos os estudantes, apresentando suas visões honestamente e buscando sínteses através da polêmica. É esse processo de construção coletiva democrática que gera a unidade tática.

A saída para esses sentimentos legítimos, no entanto, não se deve dar por meio da deslegitimação do DCE e das “forças” de forma vazia, encarando sua existência como o grande e maior problema do ME. Devemos pautar a solução por meio da democratização das entidades e espaços, incentivando a participação independente e as colocações honestas, sem que as disputas entre as forças sejam feitas às escondidas dos demais estudantes e se percam entre as práticas de autopromoção.

Também entendemos que, apesar de legítimas, essas insatisfações que muitas vezes culminam em discursos de repúdio às “forças” também têm suas limitações como movimento e também reproduzem várias dessas práticas de autopromoção e performance, prejudicando a unidade e a síntese coletiva.

Aqui, nomeamos o esquerdismo e o autonomismo como correntes que não reconhecem as limitações de determinados princípios filosóficos diante da dinâmica da realidade material. Em outras palavras, sabemos que a greve é um meio essencial de luta, mas ela não é um fim em si mesmo e não pode ser defendida a todo custo apenas porque temos acordo sobre sua importância. Devemos, antes de tudo, analisar quais as nossas condições para dar continuidade a essa greve, se ela poderá arrancar vitórias ou se ela corre o risco de se tornar um movimento sem consequências.

Cabe aqui ressaltar que defendemos, sim, a necessidade e o potencial de convencer as bases de que uma greve é importante diante de possíveis momentos de refluxo, mas, pela fraqueza do ME anterior à greve, devemos analisar nossas condições para tal, entendendo as limitações da greve e como agir a partir desse momento. Nesse sentido, é necessário construir a mobilização e disputar os institutos nos quais a greve não durou muito tempo, por exemplo, criando, desse modo, verdadeiros acúmulos políticos e bases sólidas capazes de gerar transformações futuras.

Ainda, para além da necessidade desta análise concreta (o que não exclui as críticas válidas às falhas das direções nesse processo), também devemos ser sinceros sobre como essa greve serviu para nos mostrar que pouco sabíamos sobre a estrutura da USP e sua burocracia, reconhecendo que o ME em geral estava despreparado para a greve. Aqui, criticamos novamente as correntes esquerdistas que defendem a continuidade da greve em nome da conquista do gatilho automático, sem avaliar se de fato temos condições reais de conquistar essa vitória.

Durante as negociações, descobrimos que quem delibera sobre o gatilho automático é o Conselho Universitário e mesmo que o Reitor leve essa pauta para o CO, seria necessária a alteração dos Parâmetros de Sustentabilidade da USP, o teto de gastos da USP, para possibilitar a liberação de verba para as contratações via gatilho automático. Como então conquistar essa reivindicação diante desse fato concreto e também da desmassficação do movimento?

Nesse caso, nossa posição pelo encerramento da greve geral não significa um recuo derrotista ou uma discordância acerca da centralidade do gatilho automático e demais pautas para a nossa greve, mas um reconhecimento das limitações que enfrentamos neste momento. Compreendendo nossos limites, devemos então avançar para superá-los, contribuindo para a nossa formação acerca da burocracia universitária sem condicionar o movimento ao seu funcionamento, mas entender sua dinâmica e os pontos que podemos atacar, nos preparando para os próximos enfrentamentos e mantendo o saldo político e organizativo da greve. Temos clareza de que a reitoria e o CO não são da nossa classe e de que, por isso, não acatam nossas demandas facilmente. Desse modo, sabemos que somente por meio de um planejamento consequente, um preparo estruturado e um movimento organizado é que poderemos conquistar nossas demandas de fato.

A UJC entende que temos que construir as condições necessárias para a luta, o que consiste no reconhecimento das nossas insuficiências e na busca pela superação delas. Por isso, fazemos nossa crítica às correntes esquerdistas e autonomistas que defendem a continuidade da greve nesse momento, sem avaliar a limitação dos nossos acúmulos políticos, organizativos e administrativos. Não temos os recursos legais e políticos para enfrentar uma radicalização do movimento, isso, inclusive, poderia acarretar em derrotas sérias e em uma forte cicatriz na consciência dos estudantes, que mesmo se entendendo enquanto classe terão medo de lutar por seus interesses, perdendo assim a mais importante conquista da greve. São estas, posições irresponsáveis e sem a organização tão essencial para nós.

No momento, entendemos que não devemos voltar no tempo em busca de uma greve que, na prática, se esgotou. Devemos seguir em frente e superar os desafios que estão postos hoje, entender as raízes dos nossos desafios e buscar as formas para avançar nas lutas futuras.

Também entendemos isso como consequência da condução insuficiente das direções estudantis, em especial aquelas que insistem em práticas desonestas e mentirosas acerca das conquistas da greve e que não são capazes de oferecer alternativas reais de mobilização e participação democrática estudantil para o pós greve.

Crítica à proposta do ME

Também reconhecemos a condução insuficiente das direções estudantis, em especial aquelas que insistem em práticas desonestas e mentirosas acerca das conquistas da greve e que não são capazes de oferecer alternativas reais de mobilização e participação democrática estudantil para o pós greve.

Mesmo defendendo a posição do fim da greve e assinando a carta conjunta apresentada na assembleia (18/10), a UJC tem uma leitura muito diferente da apresentada por outras forças. Reconhecemos que a carta assinada tinha uma linha política rebaixada, tentando pregar medidas claramente insuficientes como vitórias, defendendo a unidade em abstrato, não reconhecendo os erros na condução da greve e muito menos sendo capaz de apontar com clareza como será a construção das lutas no futuro. É claro que, ao apresentarem que a greve foi vitoriosa, seríamos recebidos com cinismo e desconfiança, afinal não há um estudante que acredite de fato que essa greve foi vitoriosa, que as medidas impostas pela reitoria são suficientes. Longe disso, todas as medidas impostas de alocação de verba são muito insuficientes e não respondem às reais demandas apresentadas pelos estudantes e as conquistas políticas são em sua grande maioria promessas vazias, “vamos ver de ver”.

É necessário reconhecer que a maioria das forças reconhece a insuficiência das medidas da reitoria, porém ainda falam que a greve foi uma vitória pois tiveram conquistas do movimento em si, que melhoram as perspectivas de luta. Contudo, colocar com todas as palavras que a principal conquista da greve foi organizativa e que essa principal conquista é “saber fazer assembleia”, é de um cinismo preocupante. Saber fazer assembleia é o mínimo que se espera do movimento, e é a única conquista relativa ao movimento que foi apresentada, inclusive como se ela fosse tão boa que valeria a pena sair da greve e cantar vitória!

Para vender essa vitória, a grande conquista de “saber fazer assembleia”, realizam falas performáticas que buscavam a autopromoção. Ao longo do documento já afirmamos claramente: a greve não foi vitoriosa. Não se pode tentar vender para as bases, para os estudantes que confiam em nós, essa mentira da vitória, pois ela não ocorreu e isso está claro para todos. Tentar vender essa mentira não só não convence ninguém mas, principalmente, faz com que os estudantes percam a confiança em todas as forças, algo extremamente danoso ao movimento como um todo e que não podemos aceitar. É preciso apresentar um balanço claro das conquistas da greve, categorizá-las e analisá-las para entender: quais são insuficientes e porque, o que mudou no movimento e porque e como preservar os saldos organizativos e políticos.

Em nenhum momento houve um balanço sóbrio, o discurso era que a greve foi histórica mas se a greve foi histórica porque saímos com tão pouco? Isso é uma falsificação do que ocorreu. Sim, a POLI parou depois de décadas, mas saiu da greve pela inércia da principal entidade representativa eleita do instituto, o Grêmio. Não ajudaram em nenhum momento na construção da greve e no impedimento das aulas, se esquivaram de opinar sobre os temas a todo momento e não mediaram as conversas com a diretoria, o movimento virou uma grande desordem que levou os alunos grevistas a terem dificuldade de convencer o resto dos estudantes. Então, para desmobilizar de vez o movimento, o Grêmio passou um plebiscito online completamente despolitizado em assembleia, o qual votou pelo fim da greve.

Sim, a mobilização das primeiras semanas foram massificadas, enormes, coisa que não víamos há décadas em uma greve, mas logo em seguida o movimento derreteu rapidamente. E em nenhum momento se apresenta um balanço sobre isso, fica apenas na memória das primeiras semanas e ignoram todo o resto para se autopromover enquanto dirigentes de uma greve histórica, sem encarar que foi uma greve histórica que não teve suas principais reivindicações atendidas!

Ao defender o fim da greve, prometem um “estado de mobilização permanente” mas, em nenhum momento, apresentam o como. Se antes o movimento era dirigido pelas forças e ele era esvaziado e cheio de vícios, como iremos mobilizar os estudantes? Onde eles se organizarão? Pra que? Em torno de qual projeto político? Sem responder essas perguntas, o tal “estado de mobilização permanente” não passa de uma promessa vazia para pessoas que não confiam em nós. Entendemos então que para solidificar nossas conquistas organizativas e políticas, precisamos criar espaços democráticos de discussão e deliberação, através das entidades. Mas mesmo se fizermos isso, não conseguiremos manter as pessoas engajadas nesses espaços se o ME tradicional não realizar uma profunda autocrítica, entendendo seus vícios, como são danosos ao movimento e atuando, na prática, para superá-los. Sem esses dois compromissos, apostar nas mobilizações futuras é apenas uma promessa vazia.

É de se esperar então o rechaço apresentado ao DCE e às forças que defendiam o fim da greve naquele momento. Ao vender a greve como vitoriosa, colocando como conquista “saber fazer assembleia” e prometendo sem nenhuma garantia a mobilização futura, ficou muito claro para todos os estudantes ali presentes que o que estava sendo prezado naquele momento era a performance. Mas mais preocupante e enfurecedor que a performance e a autoconstrução, é o cupulismo que transparece com muita clareza naquele momento, com diversas das forças achando que se elas fizessem um acordão poderiam acabar com a greve! Lógico que haveria rechaço! A greve não é das forças partidárias, não é das cúpulas, ela é também das bases, nós construímos a greve e a dirigimos em conjunto com estudantes independentes e com as bases.

Próximos passos

Diante do balanço apresentado a respeito do processo de greve, devemos, então, apresentar quais os próximos passos que a UJC defende para que possamos dar consequência para as nossas críticas e autocríticas e para que possamos continuar na luta de forma diferente. O objetivo é, sobretudo, combater as práticas criticadas nesta carta, buscando alternativas que deem continuidade ao que defendemos para a universidade.

Primeiramente, entendemos que tivemos durante o processo da greve, saldos políticos e organizativos positivos. Ou seja, viemos de um contexto de baixas mobilizações no ME, muito por conta da pandemia, e a massificação desta greve foi essencial para a retomada de um movimento que não víamos há tempos. Nesse sentido, ressaltamos a centralidade e a importância dos estudantes não organizados terem construído os espaços políticos e culturais da greve de forma propositiva, entendendo-se também como atores políticos de todo esse processo.

Nessa perspectiva, uma greve é uma tática que está muito além dos seus fins de denúncias e negociações feitas para arrancar nossas reivindicações. A greve cumpre aqui um papel fundamental de quebrar com a apatia existente, criar um sentimento de pertencimento coletivo e, como apresentado anteriormente, transformar a classe em si em classe para si, para que possamos seguir rumo a um ME cada vez mais ativo com o potencial de conquistar o que queremos como projeto para a USP: uma universidade pública que seja ocupada pelos trabalhadores e que, não sendo mercantilizada, tenha o compromisso de produzir conhecimento para os trabalhadores. Uma universidade amplamente democrática e comprometida com a luta pelas transformações sociais. A greve, portanto, é uma tática que nos leva na direção de reformas institucionais, mas também na direção da massificação e do fortalecimento da luta estudantil e das nossas práticas de auto organização, essas últimas, sendo essenciais para a construção do nosso projeto de universidade.

Por isso, nós defendemos a necessidade do ME se reestruturar e para isso são necessárias ações que deem conta de preservar nossas conquistas organizativas e políticas, mantendo a disposição de luta dos estudantes. Devemos dar conta de manter essa organização tendo sempre em mente quais os nossos objetivos e, assim, debatendo e buscando alternativas para alcançá-los.

Politicamente, as entidades estudantis, gerais e de base cumprem um papel central. Primeiramente, estas entidades possuem um caráter legal que legitima as deliberações coletivas estudantis e que possibilita que possamos dialogar – mesmo que existam limites – com a reitoria, diretorias e departamentos. Além disso, as entidades são uma ferramenta de mobilização, divulgação e até mesmo de proteção estudantil, por meio da qual os estudantes podem se manifestar sem se expor individualmente, pois estão respaldados pelas entidades. Aqui, é essencial ressaltar que as entidades têm o compromisso de seguir as deliberações legítimas feitas pelos estudantes nos devidos espaços. São representantes da classe estudantil e, por isso, devem ser a ferramenta por meio da qual a classe se organiza e produz suas sínteses políticas coletivas, mas para que isso possa ocorrer, os vícios do ME já apontados acima, devem ser superados.

Por fim, para que as entidades cumpram com seu papel de forma consequente, não deixando que a mobilização que conquistamos durante a greve desapareça, elas devem ser muito mais democráticas do que são hoje. Os espaços de deliberação não podem ficar à mercê de comportamentos cupulistas e devem, sobretudo, ser construídos em conjunto com e pelas bases. Devem ser apresentadas disputas honestas e debates sérios, capazes de gerar acúmulos, produzir sínteses e propor alternativas coesas.

São nesses espaços que as disputas políticas são feitas e, por entendermos que todos os estudantes – independentes e organizados – são atores políticos e devem tomar suas decisões diante do que está em debate, defendemos que as disputas devem ser feitas por todos nos espaços deliberativos. Ainda, apresentamos a nossa autocrítica por não termos exposto as coisas com clareza como fazemos agora. Por conta dessas falhas, nossa capacidade de convencimento e a conquista da confiança estudantil foram prejudicadas e, por isso, não fomos capazes de expor nossa linha de modo correto.

Somente por meio do debate transparente em assembleias, reuniões, fóruns e demais espaços democráticos promovidos pelas entidades é que poderemos de fato ter uma unidade tática.

Assim, a proposta da UJC para a criação das condições materiais de um movimento vitorioso é: a democratização das entidades a partir da criação de espaços amplos de geração de acúmulos, discussão e sínteses, como GTs, Fóruns, Tribunas Abertas e comitês, nos inspirando das iniciativas locais da Física e do IME. Para o DCE, propomos também a criação de uma Tribuna Pública de Balanço da Greve, bem como fóruns de discussão gerais, divididos por sub regiões, com o intuito de gerar acúmulos sobre a complexa burocracia universitária da USP e seu financiamento. É aprendendo com e fortalecendo as iniciativas estudantis que surgiram durante a greve (como GTs, fóruns e comitês) que iremos democratizar as entidades, aprendendo como contornar a burocracia, o cupulismo e, sobretudo, realizar disputas honestas sempre pautando nossos acúmulos, sínteses e alternativas coletivas.

Considerações finais

A UJC acredita que a greve teve conquistas muito importantes sobre o próprio movimento, como a inserção de mais independentes na atividade política ativa e, principalmente, o reconhecimento dos estudantes enquanto um grupo com interesses específicos e antagônicos aos que estão dirigindo a universidade, compreendendo a necessidade de serem coletivamente o sujeito ativo na defesa de seus próprios interesses. É isso que embasa a necessidade de reorganização do movimento para receber essas novas pessoas, uma vez que o movimento estudantil tradicional está cheio de vícios que afastam e desmobilizam os estudantes, principalmente os estudantes trabalhadores, como o cupulismo que implica na falta de democracia das entidades e espaços promovidos por estas. Assim, acreditamos que a principal tarefa do ME atualmente é a criação de espaços de geração de acúmulos, discussões e sínteses, que devem ser promovidos pelas entidades, de modo a democratizá-las.



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Mobilização nos interiores - Parte 1: São Carlos, Piracicaba e Ribeirão Preto

Sabemos da diversidade dos campus da USP em diversos aspectos, não só o geográfico, mas o cultural, de infraestrutura, investimento e até mesmo a ideologia dominante do local e as lutas do movimento estudantil. Nesse sentido, essa matéria tem o objetivo de informar e fazer balanço, a partir da construção de militantes comunistas, como esse desenrolar se deu nos interiores.