Da tripulação à terceirização: burocracia a favor da destruição do serviço público

Oras, a mesma tripulação, elogiadíssima pelo seu trabalho e suas contribuições em alto mar além da relação de confiança fortíssima criada a sangue, suor e chuva, agora vai ser descartada por conta de um projeto privatista

Por UJC-USP, em 29.10.2023 · 7 mins

Em maio de 2023, observamos uma paralisação no instituto oceanográfico da USP, motivado pelo cancelamento sumário dos contratos de trabalho da tripulação dos navios de pesquisa Alpha Delphini e Alpha Crucis. Aqui vale notar o discurso infundado, repetido tanto pela reitoria quanto pela diretoria do instituto, de que os 30 trabalhadores são terceirizados. Ora, além de ser uma tripulação com no mínimo 10 anos de experiência com trabalhos embarcados nestes navios, todos apresentam documentos comprobatórios, tais como carteira de trabalho assinada pela universidade, número USP funcional de servidor, holerites e folhas de pagamento da universidade. Apesar da mobilização ter barrado o cancelamento do contrato e, consequentemente com a judicialização do caso, termos o início de uma negociação entre a reitoria, o sindicato dos trabalhadores da USP (SINTUSP) e a tripulação, observamos no início de Setembro de 2023 a contratação de uma empresa terceirizada com menos de 3 anos de experiência profissional (Brasil Atlântico), cujo dono é amigo pessoal do diretor do Instituto, para gestão dessas duas embarcações, implicando, então, na demissão de toda a tripulação e substituição por duas tripulações recém-contratadas.

Começamos que a terceirização, além de representar um sucateamento das atividades realizadas nestes navios e também da infraestrutura dos mesmos, é um risco à vida de qualquer pessoa que navegar num cruzeiro onde haja este tipo de gestão. Pois, além da alienação da tripulação em relação ao navio, que sendo terceirizada será girada periodicamente, não haverá qualquer garantia de um protocolo de segurança com uma base forte na experiência de trabalho em alto mar formada ao longo de anos, uma vez que um marinheiro demora meses ou mesmo anos para conhecer o navio em que trabalha a fio, além de saber lidar com problemas em alto mar que, sem o devido preparo ou experiência, possam ser fatais em casos extremos.

Observando os trâmites das negociações que ocorrem na reitoria, nota-se uma presença muito forte de um discurso contra a regularização do contrato de trabalho de toda a tripulação, este sendo um dos motivos principais da entrada do corpo discente do Instituto Oceanográfico da USP na greve geral iniciada em 21 de Setembro de 2023. Além do discurso de irregularidades na contratação e a falta de resposta da reitoria e da diretoria quanto aos pedidos de negociação para que ao menos paguem os direitos trabalhistas destes marinheiros, percebe-se uma falta de vontade política da universidade de efetivar esses contratos. Além da irresponsabilidade da USP com seu próprio patrimônio e seus trabalhadores, essa ação, no mínimo cruel, já levou vários tripulantes a adoecerem e se afastarem do trabalho. Para termos noção, a universidade não paga salários e nem os direitos trabalhistas tais como INSS e FGTS desde Setembro de 2022!

Na parte judicial, em conversa com o SINTUSP e seu advogado, encontramos uma lei que também quebra este argumento. Segundo o artigo 55 da lei 9784/99, que diz “em decisão na qual se evidencie não acarretarem lesão ao interesse público nem prejuízo a terceiros, os atos que apresentarem defeitos sanáveis poderão ser convalidados pela própria administração”, qualquer tipo de prova da efetividade e eficácia da tripulação mostra que a regularização do contrato e, consequentemente, reconhecimento do vínculo trabalhista dos marinheiros com a USP, é a única forma cabível de lidar com o problema dos contratos. E tais provas também existem, a exemplo do comentário do próprio corpo discente em momentos anteriores sobre a alta capacitação da tripulação e a excelência de seu serviço em alto mar. Não só isso, como inúmeros prêmios por expedições de todo tipo, inclusive até mesmo uma das primeiras expedições de pesquisa da américa latina à Antártica no navio de pesquisa professor Wladimir Besnard. Aliás, este último fora doado pela USP para se tornar um navio-museu ou um recipiente de coral artificial, visando servir como espaço de turismo e difusão científica, contudo, após anos esquecido atracado ao porto de Santos, foi determinado pela justiça o desmanche e desova de suas partes - tal decisão é simbólica da burocracia universitária e irresponsabilidade administrativa de décadas de direção do instituto oceanográfico.

E quando temos a posição da diretoria do IOUSP e seu corpo docente, é majoritariamente o mesmo discurso da reitoria e ainda comentários difamatórios por parte de professores com projetos milionários para cima da tripulação. Oras, a mesma tripulação, elogiadíssima pelo seu trabalho e suas contribuições em alto mar além da relação de confiança fortíssima criada a sangue, suor e chuva, com inúmeros prêmios pelas embarcações e e-mails com inúmeros agradecimentos e elogios, agora vai ser descartada por conta de um projeto privatista que já sucateia a oceanografia e agora nos condena a incertezas: conseguiremos terminar nossas pesquisas com vida e segurança? Iremos abandonar uma relação de confiança em alto mar por conta de um processo burocrático que, além de não se sustentar pelas provas materiais, já existe uma lei que aponta para a regularização da tripulação dentro do problema burocrático apontado?

Por fim, após todas as provas materiais de sua ligação trabalhista com a Universidade de São Paulo e da eficiência de seu serviço em alto mar, é inaceitável qualquer processo que os afaste dos navios de pesquisa e coloque em seu lugar o serviço de uma empresa cujo conhecimento das embarcações é pífio, quase nulo, numa decisão sustentada por uma burocracia vazia e mantida por quase 40 anos em casos específicos. A Universidade deve buscar as soluções que prezem pelo elevado desempenho científico-acadêmico de suas funções ao mesmo passo que preza pelo bem-estar de seus pares, não aceitando qualquer projeto em prol de ganhos egoístas de diretorias e reitorias. Às tripulações dos Alpha Delphini e Alpha Crucis, nossa solidariedade e união nesta luta contra a privatização da oceanografia!



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